05 janeiro 1997
01 janeiro 1997
berrante, panela e pincel
De galochas brancas, bermuda e camiseta, Katsue Yuba, 61, mantém um olho no fogão e outro no relógio. Além de pilotar a panelada na cozinha comunitária, cabe a ela a missão de tocar o berrante, religiosamente, às 6h, 12h e 18h. Buzina de chifre com que os boiadeiros tangem o gado, em Yuba, o instrumento tem outra serventia: anunciar aos moradores que a comida está na mesa.
Por baixo do disfarçe de cozinheira caipira, Katsue esconde outras habilidades. Sua verve artística irrompe a cerca de dez metros da cozinha, na casa desenhada e construída por ela, que mais se parece com os ateliês "hipongas" de praia no Sul da Bahia.
Quadros, fotos, objetos de madeira reciclada, esculturas, molduras, haicais (poemas japoneses constituídos de três versos), livros de contos e histórias. Esse arsenal se completa com anotações em japonês e português, idioma que Katsue só conheceu aos 29 anos.
No centro do estúdio, uma grande tora de aroeira oferece sustentação ao imóvel. "Aqui é a minha base. Madeiras como essa ergueram nossas primeiras casas", conta. "Meu pai dizia que nós não temos o direito de cortar árvores como essa, que levaram anos para se desenvolver, usá-las e depois abandoná-las", diz, emocionada, ao citar Isamu Yuba (1906-1976), fundador da comunidade. "É pelo respeito à natureza e à história dos meus pais que eu nunca vou desertar dessa terra."
Em meio aos quadros, o desenho de uma senhora com uma menina ao lado chama a atenção. "Mamãe" é uma homenagem póstuma a Hama, mãe de Katsue, imigrante japonesa que viveu uma saga ao deixar o Japão e partir para um país incógnito.
Vítimas da gripe espanhola, os pais de Hama morreram às vésperas de rumarem para o Brasil, cerca de 80 anos atrás, quando a menina tinha dez anos. A jovem deixou o Japão seis anos depois, adotada pela família Katsuda. Levaram 60 dias para chegar a Santos.
Hama se casou com Isamu antes de ele fundar a comunidade Yuba. À época, ela tinha 19 anos, ele, 24. O casal teve 11 filhos. A menininha do quadro morreu aos quatro meses de vida. Katsue usou terra do túmulo da mãe para pintá-lo, em janeiro deste ano.
Cinco anos após a morte de Hama, Katsue encontrou o diário secreto da mãe. As anotações serviram para a filha escrever o livro "A Frondosa Árvore de Hama", publicado de modo independente e nos dois idiomas (pode ser encontrado em livrarias no bairro da Liberdade).
A cozinheira-artista visitou a terra natal dos pais três vezes. Na última, em março, Katsue levou as cinzas da mãe para colocar no túmulo dos avós maternos. "Foi uma maneira de dizer a eles que minha mãe viveu muito bem aqui no Brasil."
Assim que despejou as cinzas de Hama, a filha lhe prestou mais uma homenagem. Com voz de soprano, cantou ave-maria. Em latim.
a pátria de sapatilhas
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Faça chuva ou faça sol, Akiko Ohara não consegue ficar parada. Emulando gestos de adolescente, essa senhora de 72 anos movimenta os braços, ergue as pernas, faz aberturas e ainda comanda com disciplina oriental 30 alunos, dos 5 aos 85 anos.
Quarenta e seis anos se passaram e a criadora do Balé Yuba não deixou de se perguntar como aqueles corpos, castigados pela labuta diária e o sol quente da roça, conseguem se tornar tão maleáveis sobre o palco.
São agricultores durante o dia que, à noite, transformam-se em bailarinos. "Eles não freqüentaram uma escola de balé nem havia tradição de dança em seus históricos familiares. O que sabem aprenderam aqui, dentro da comunidade", diz Akiko.
Ao lado do marido, o escultor Hisao Ohara, Akiko deixou Tóquio para tentar vida nova no Brasil, onde chegou em dezembro de 1961. "Um amigo disse que eu teria a chance de criar muitas coisas novas por aqui. Acreditei. Mas, para vir para cá, precisava trabalhar com alguma coisa que eu dominasse: o balé."
Do outro lado do mundo, Isamu Yuba, o criador da comunidade, estava procurando, naquela época, profissionais para tocar o projeto cultural em sua fazenda no Brasil. Bingo.
Quando o casal chegou a Yuba, juntou-se aos moradores para, em dez dias, colocar de pé o palco do teatro Yuba, que mede 10 m de largura por 12 m de fundo, com capacidade para 800 pessoas. É ali que acontecem, até hoje, as principais apresentações culturais da comunidade -além do balé, espetáculos teatrais são encenados na época do Natal.
Desde aquele dezembro, o Balé Yuba não parou mais. Neste fim de ano, completa mil apresentações. Já esteve em diversas regiões do Brasil, Japão e Paraguai. É um balé de dança moderna, diz Akiko, nas poucas palavras que articula em português.
Os garotos das primeiras gerações achavam que balé era "coisa de menina". Viviam inventando desculpas para cabular aula, que não é nem nunca foi obrigatória. "Aos poucos, de geração em geração, eles foram percebendo que a dança deve ser cultivada com o mesmo esmero que uma fruta", diz. "O balé se tornou tão indispensável para nós quanto a comida, a reza ou o sono. Faz parte de nossas vidas, da nossa essência."
As crianças têm aulas de balé duas vezes por semana (para os adultos, são três).
O Balé Yuba já teve cenários projetados por artistas como Manabu Mabe e Yoshiya Takaoka. Ex-colega de palco de mestres do butô (movimento que combina dança e teatro performáticos) como Kazuo Ono e o coreógrafo, bailarino, filósofo da dança e professor Tatsumi Hijikata, Akiko conta que o processo de criação da coreografia se divide em duas etapas.
A primeira sempre leva em conta o cotidiano rural da comunidade. Reproduz movimentos da natureza e jogos lúdicos infantis, por exemplo. A segunda busca inspiração tanto na cultura japonesa como na brasileira, do quimono às bombachas gaúchas, passando pelas festas tradicionais dos dois países.
Criado em 1965 e apresentado até hoje, o espetáculo "Bravos Pioneiros" narra a trajetória da primeira geração de imigrantes de Yuba. É o favorito de Akiko. "É o retrato do meu povo. Cozinheiras, lavadeiras, boiadeiros, agricultores...", diz ela. Gente que horas antes de subir ao palco está picando verdura para a salada, apanhando goiaba ou tocando a boiada no pasto. Em Yuba, a dança os iguala. "Quando a luz se acende, todos nós somos bailarinos."
A Grande Familia
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A grande família
por Roberto de Oliveira
fotos Maria do Carmo
Existe um lugar onde o Brasil faz fronteira com o Japão. Fica logo ali, a cerca de 600 km da cidade de São Paulo. Na saída da rodovia Marechal Rondon, a placa avisa: Associação Comunidade Yuba.
Em princípio, parece uma simples fazenda, com uma imensa varanda colonial e velhos tratores estacionados ao relento. Conforme se aproxima, o cenário se confunde. Yuba não é apenas uma propriedade rural nem seus habitantes meros lavradores. Às vésperas dos cem anos de imigração japonesa no Brasil, a comunidade cravada no interior do Estado ainda preserva costumes milenares e cultiva, além da roça, uma rotina cultural sem paralelos com outros confins do país.
Às 18h, uma senhora sai da cozinha, emite palavras incompreensíveis para a reportagem e saca um berrante, instrumento tão difuso no Brasil rural arcaico, para anunciar a hora da janta.
Os trabalhadores vão chegando e tomam assento em longos bancos do refeitório comunitário. Um minuto de silêncio antes de comer. Uns agradecem a Deus, outros a Jesus e há espaço para Buda.
Ao lado dos talheres, hashis, os tradicionais pauzinhos. Não se ouve uma só palavra em português. A língua oficial é o japonês, assim como o cardápio.
Não há refrigerante. O que se bebe é chá gelado. O jantar parece derradeiro em mais um dia de tarefa. Ledo engano.
Na comunidade Yuba, não basta só cultivar a terra. O sol se põe e a luz da noite ilumina mais uma etapa no aglomerado agrícola. O refeitório coletivo, repleto de ideogramas, vira uma animada sala de coral e piano.
A poucos passos dali, música clássica embala aulas de balé. Senhoras e senhores, que labutavam horas antes no campo, deixam seus sapatos do lado de fora e começam a se alongar. Na casa ao lado, um agricultor com as bochechas marcadas pelo sol toca trompete, enquanto a vizinha, ainda cheirando a alho de cozinha, pinta um quadro.
Ouvem-se gargalhadas. Vêm da biblioteca, onde adolescentes se debruçam sobre pilhas de livros na aula de japonês. As crianças de Yuba só são alfabetizadas em português a partir de seis anos.
Inteiramente comunitária, a vida em Yuba lembra o sistema social idealizado por Thomas Morus (1478-1535) na imaginária ilha Utopia. Com uma diferença: há 72 anos, um grupo de japoneses e descendentes luta para subverter as regras do sistema capitalista e manter coesa uma comunidade rural nos arredores de Mirandópolis.
Nenhum de seus moradores goza de regalias ou privilégios. Nem mesmo o presidente da associação. É livre a escolha do "setor" onde querem trabalhar -horta, roça, gado, com galinhas, porcos ou panelas. Eles exercem seus ofícios em sistema de rodízio, para garantir que todos aprendam um pouco de cada função e não resvalem no tédio.
O produto do trabalho, ali, não é grana no bolso. Ninguém recebe salário e não há transações locais com dinheiro. Se alguém precisa de um par de tênis novos para jogar beisebol, o esporte favorito da comunidade, leva o assunto à administração. O mesmo acontece com as outras necessidades materiais. Já alimentação, moradia e atividades culturais dispensam qualquer controle burocrático. Em Yuba, são direitos de todos.
Cultura de subsistência
Para manter a comunidade, há um gasto mensal em torno de R$ 15 mil que corresponde a despesas com telefone, energia elétrica, comida e manutenção do maquinário, explica, em bom português, o presidente da associação, Tsuneo Yuba, 53, no seu segundo mandato. Compram-se produtos como arroz, feijão, óleo, sabonete e café.
Cerca de 60% de tudo o que se consome é produzido na própria fazenda. Frutas, verduras, leite, carne, pão, manteiga, geléias, macarrão e até shoyu. Há um poço artesiano que abastece a fazenda, inclusive o ofurô coletivo, masculino e feminino.
Yuba funcionava como uma grande comunidade, mas, no papel, transformou-se numa associação, composta por presidente e vice, tesoureiro e secretários, eleitos de forma democrática, pelo voto direto. O quadro administrativo surgiu como alternativa para controlar a entrada de recursos, obtidos principalmente com a venda de frutas e legumes, e as despesas para sustentar o local.
Eles preferem manter em sigilo o faturamento da comunidade. "Temos todo interesse no lucro e estamos lucrando. Só que o dinheiro ainda só dá para pagar contas", diz Tsuneo. Como associação, os administradores alteraram estratégias de venda. Antes, os alimentos passavam por atravessadores, o que reduzia o lucro. Agora, vão direto para os pontos-de-venda, como supermercados.
Se a dificuldade financeira está sendo superada, Yuba enfrenta outro obstáculo: a sobrevivência de seu modelo. "Acho natural que a comunidade um dia acabe. Esse tipo de sociedade praticamente não existe mais num mundo capitalista e globalizado como o de hoje", diz Tsuneo.
A sobrevida, portanto, é responsabilidade dos jovens. O empecilho na hora de gerar novas famílias é que a maioria tem algum grau de parentesco. Cerca de 30%, por exemplo, são da linhagem Yuba -em japonês, lugar do arco. Recomenda-se, portanto, evitar o casamento entre eles.
Mas nem todos se vêem trocando alianças com um gaijin (estrangeiro). "Meu sonho é me casar com alguém da própria comunidade. Os rapazes da cidade são desinteressantes e infantis", acha Mie Yuba, 19. Seu irmão, Daigo, 23, diz não se importar se a garota é japonesa ou brasileira, mas faz questão de frisar: "Os japoneses ajudam uns aos outros e valorizam sua cultura. Isso é muito importante".
Yuba já foi uma grande comunidade, com cerca de 300 integrantes; hoje, são 61, contingente formado basicamente por adultos que não pensam em deixar a terra. "Nasci, cresci e casei aqui. É uma utopia que virou realidade", diz a cozinheira Yumiko Kumamoto, 48, professora de desenho nas horas vagas.
A resignação de Yumiko não é coletiva. Por exemplo: a comunidade não paga estudos a nenhum morador. De certa forma, isso impele os que querem estudar a deixar o grupo. Quem quiser sair para fazer faculdade deve contar com sua própria renda. Como eles não têm salário, muitos vão trabalhar no Japão, fazem um pé-de-meia e retornam ao Brasil para concluir o curso universitário.
Daigo, assim como outros jovens de Yuba, costuma sair nos fins de semana, para dançar, paquerar e tomar umas cervejinhas em Mirandópolis.
Arte, terra e oração
Yuba mantém atados os laços com a herança oriental introduzida por seu fundador, Isamu Yuba (1906-1976). No início dos anos 20, a região noroeste do Estado de São Paulo parecia o lugar perfeito para que um grupo de recém-chegados do Japão criasse um assentamento de imigrantes. O núcleo tinha até nome, Aliança, que para eles tinha o sentido de cooperação mútua entre imigrantes japoneses e a sociedade brasileira.
Cerca de mil famílias japonesas foram para aquela região e formaram a primeira, a segunda e a terceira Alianças, entre 1924 e 1927. Quando soube da idéia, Isamu Yuba, então com 20 anos, decidiu, apesar da resistência do pai, partir com a família composta por dez integrantes, rumo ao interior paulista.
O ano era 1935. Isamu começou a construir a fazenda com a ajuda de amigos que compartilhavam da mesma ideologia. Sob o tripé "cultivar a terra, orar e praticar as artes" surgiu a comunidade Yuba. Seu líder e fundador teria sido influenciado pelas idéias de Tolstói, Marx e Jean-Jacques Rousseau, aliadas aos ensinamentos da Bíblia.
Semelhanças com os kibutzim israelitas? Os parentes de Yuba descartam. Na comunidade, há quem defenda que a inspiração veio de uma antiga vila de descendentes lituanos, criada naquela época nos arredores de Bastos (SP).
O antropólogo japonês Koichi Mori, 51, do Centro de Estudos Japoneses da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, vê outras ligações. Ele acha que a criação de Yuba pode ter sido motivada, principalmente, pelas idéias do escritor japonês Saneatsu Mushanokoji, autor de um famoso romance intitulado "Atarashikimura" (comunidade rural nova), escrito no início do século passado e de cunho comunista.
Segundo o antropólogo, a obra influenciou a criação de comunidades agrícolas, parecidas com Yuba, em diferentes partes do Japão. Algumas delas existem até hoje. ''Yuba foi criada na época liberalista japonesa conhecida como Taisho. Entre os movimentos que surgiram naquele período, estão os de comunidades socialistas em áreas rurais'', explica.
Yuba, o fundador, morreu em 1976, aos 70 anos. Yuba, a comunidade, equilibra-se como pode para manter de pé a filosofia de seu criador.
Recepção de forasteiros
Os visitantes são apresentados à comunidade no refeitório coletivo. Eles devem respeitar o horário das refeições e jamais começar a comer antes do minuto de silêncio em agradecimento. Em nenhum momento o forasteiro será abordado pelos locais ou questionado sobre sua presença ali. Assim se sentirá à vontade para participar das atividades culturais e de lazer.
É um equívoco imaginar os moradores de Yuba vivendo em uma redoma, excluídos do contato social. Não há muros nem portões que delimitam a propriedade rural. As portas não possuem tranca, as janelas são fechadas por cortinas.
Há TV via satélite (telejornais japoneses e jogos de beisebol são os mais concorridos) e acesso à internet. Eles assinam três jornais (um de circulação nacional) e recebem muitos visitantes, brasileiros e estrangeiros -japoneses sobretudo.
Suguimoto Massaro, 63, chegou há pouco mais de um mês com a decisão de ficar. Não é sua primeira vez. Em 1965, havia passado seis meses na fazenda. Voltou para o Japão e perdeu o contato com a colônia. Vasculhando a internet, restabeleceu contato. Desta vez, jura que a mudança é definitiva. "Eu me sinto jovem aqui. É o lugar que escolhi para ter uma nova vida. Até vendi minha casa no Japão", diz, em inglês.
Responsável pela produção de shiitake, Yoshiki Tsuji, 56, que também costuma animar o refeitório comunitário após o jantar com seu clarinete, está em Yuba desde 1983. "Aqui não existem normas. Não me falta nada. Quero morrer aqui", contou, em espanhol fluente, idioma que aprendeu viajando pela América Latina.
Mesmo com todo o apego que exibem os mais velhos, o presidente da associação acredita que Yuba vive próxima do fim. "O jovem que sai para trabalhar ou estudar dificilmente regressa à comunidade", reconhece.
Para o antropólogo da USP Koichi Mori, há muito, Yuba se tornou permeável à lógica capitalista. ''Os jovens saem para trabalhar no Japão, para ganhar dinheiro e poupar'', conta. Koichi não arrisca um palpite sobre quanto tempo a comunidade irá resistir. ''O grande conflito cultural é como manter a união entre japoneses e descendentes'', diz ele.
Numa visão otimista, a salvação de Yuba estaria num novo ciclo de colonização japonesa, com a chegada de mais uma leva de imigrantes. Fato é que nos últimos dez anos apenas um japonês imigrou para Yuba e formou família com uma moradora local. Ao mesmo tempo, a evasão atingiu 20 yubenses.
Os que ali ficaram sabem que são herdeiros da terra e daquele modo de vida. Pelo menos enquanto a comunidade existir.

