05 janeiro 2006

Emoções - Anais Nin



A Racionalização das Emoções
O ponto de vista feminino tem sido muito mais difícil de expressar que o masculino. Se assim me posso exprimir, o ponto de vista feminino não passa pela racionalização por que o intelecto do homem faz passar os seus sentimentos. A mulher pensa emocionalmente; a sua visão baseia-se na intuição. Por exemplo, ela pode ter um sentimento em relação a qualquer coisa que nem sequer é capaz de articular. A princípio, achei extremamente difícil descrever como me sentia. Porém, se fazemos psicanálise, a questão é sempre: «Como é que se sentiu em relação a isso?» e não «O que é que pensou?» E como muito frequentemente a mulher não deu o segundo passo, que é explicar a sua intuição - por que passos lá chegou, o a-b-c daquilo - ela não consegue ser tão articulada.

Ora eu tentei fazer isso (quer tenha conseguido quer não), e, porque estava a escrever um diário que pensava que ninguém leria, consegui anotar o que sentia acerca das pessoas ou o que sentia acerca do que via sem o segundo processo. O segundo processo veio através da psicanálise, que era igualmente um método de comunicar com o homem em termos de uma racionalização das nossas emoções de modo que pareçam fazer sentido ao intelecto masculino. Por isso existe uma diferença, penso eu, que é muito profunda, mas que está a começar a desaparecer. Com efeito, penso que, quando a geração mais jovem passa por qualquer experiência psicanalítica descobre que os sonhos dos homens e das mulheres são os mesmos, o inconsciente é universal, e que aí as coisas brotam do sentimento e do instinto e não passaram pelo processo de racionalização, e portanto este é um ponto de vista feminino. Anais Nin, in 'Fala Uma Mulher'

Fernando Pessoa

A CRIANÇA QUE FUI CHORA NA ESTRADA-I
Fernando Pessoa
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Ah, como hei-de encontrá-lo?
Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.
Se ao menos atingir neste lugarUm alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.

A CRIANÇA QUE FUI CHORA NA ESTRADA-II
Dia a dia mudamos para quemAmanhã não veremos.
Hora a hora
Nosso diverso e sucessivo alguém
Desce uma vasta escadaria agora.
E uma multidão que desce, sem
Que um saiba de outros.
Vejo-os meus e fora.
Ah, que horrorosa semelhança têm!
São um múltiplo mesmo que se ignora.
Olho-os.
Nenhum sou eu, a todos sendo.
E a multidão engrossa, alheia a ver-me,
Sem que eu perceba de onde vai crescendo.
Sinto-os a todos dentro em mim mover-me,
E, inúmero, prolixo, vou descendo
Até passar por todos e perder-me.

A CRIANÇA QUE FUI CHORA NAESTRADA-III
Meu Deus! Meu Deus!
Quem sou, que desconheço
O que sinto que sou?
Quem quero ser
Mora, distante, onde meu ser esqueço,
Parte, remoto, para me não ter.