Na redemocratização, PT e PSDB se entregaram a um jogo perigoso para a democracia por objetivos eleitorais, que é o jogo de caricatura recíproca. O PT representava o PSDB como um partido neoliberal e que teria deixado a famigerada herança maldita.
São dois termos falsos. O PSDB também fez uma caricatura do PT como um partido mais à esquerda do que efetivamente era, questionou a legitimidade da eleição de 2014, teve atuação de protagonista no impeachment, a meu ver ilegítimo, da presidente Dilma Rousseff [PT].
Esse conjunto de comportamentos de ambas as partes remete ao que os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt chamam de autocontenção ou comedimento.
É a obediência à consciência de que ganhos eleitorais imediato sem consequência de golpes baixos corroem a credibilidade das instituições a longo prazo e deveriam ser evitados. Ambos os partidos não hesitaram em se entregar a esse jogo e, sem que se dessem conta, um estava desgastando a credibilidade do outro.
Quando a sociedade brasileira chegou a uma espécie de estado de anomia após os acontecimentos de 2013, esses partidos foram vistos como forças inviáveis, e isso preparou terreno para a emergência de um populismo de extrema direita.
O debate no ambiente digital é ainda mais radical. As redes sociais têm um papel nessa dinâmica?
Sim. A arquitetura das redes sociais leva à formação dos grupos, ou das famigeradas bolhas. Quando você entra numa lógica de grupo por um laço identificatório, seja religioso, seja futebolístico, seja político-partidário, você é apoiado, você é reconhecido pelo grupo. Isso te dá um prazer narcísico do acolhimento, do pertencimento.
A tendência dessa dinâmica é recompensar a radicalidade e punir a Dúvida. Porque aquele que produz a repetição intensificada confirma o valor do grupo; quem critica premissas do grupo tende, no limite, a ser expulso.
Para que o debate público funcione, cada sujeito tem que ter uma atitude de boa-fé. Tem que ter abertura para permitir que evidências, argumentos, estatísticas e dados empíricos possam convencê-lo. A lógica de grupo transforma essa atitude.
O sujeito passa a ter um compromisso não com a interpretação mais precisa da realidade, mas com o próprio grupo. Se a melhor interpretação da realidade se chocar com os interesses do grupo, pior para a realidade. Essa talvez seja a razão principal para que nós tenhamos chegado a um estado de divisão social muito profundo.
Quando as pessoas estão completamente submetidas a lógicas de grupo, elas ativam essa retroalimentação permanente da divisão, porque a dinâmica de radicalização do próprio grupo produz ressentimento no grupo adversário, que por sua vez leva a caricaturar o outro grupo - e você entra nesse círculo vicioso.
Francisco Bosco, 46 Doutor em teoria literária pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e ensaísta, foi presidente da Funarte (Fundação Nacional de Artes) de 2015 até o impeachment de Dilma Rousseff (PT). Autor, entre outros livros, de “A Vítima Tem Sempre Razão? Lutas Identitárias e o Novo Espaço Público Brasileiro”
